Sabe que eu tinha uma tia-avó, chamava-se Doralice, que vivia a repetir para as suas filhas: "vocês tem que limpar a barriga!".
Pode não fazer muito sentido hoje em dia, pros cidadãos que tem seus ouvidos empreenhados pelas bobajadas dos movimentos negros da vida. Mas naquela época, talvez lá pelos idos de 1950 (isso porque sou a raspa do tacho do meu pai, que ja é um senhor de 70 anos), ser preto na concepção dela era ter a barriga suja, ou seja, se não casasse com um branco pra dar uma clareada a filharada só escurecia, encardia e os cabelos ficavam cada vez mais dificeis de pentear. Quero que se prendam ao detalhe dos cabelos, caros leitores, porque naquela época o negócio era passar pente quente - aqueles pentes de ferro que você põe no fogão e depois o passa fervendo nos cabelos afim de alisá-los - as pastinhas mágicas e as maravilhas do formol ainda eram desconhecidas. É muito bonito dizer que cabelo black é estiloso, o brabo é pentear, domar, manter e é até difícil de molhar! Mas vamos continuando na minha família...
Quando eu era criança, entre um choro desesperado e outro enquanto mãe e tias lutavam com a minha vasta cabeleira para penteá-la eu sempre ouvia a minha tia Cecília (a única que tinha casado com um descendente de europeu legítimo e que procriou cabelos lisos) dizer pra Carla, sua filha, que não ousasse jogar todo o esforço dela fora casando com um "neguinho" porque ela não passaria a vida a trançar o cabelo das crianças nem a passar ferro quente, já que o traste com quem ela tinha casado so deixaria mesmo de herança o cabelo maleável de Carla. Esta última casou-se com um afrodescendente legítimo...
Mas eu queria mesmo chamar a atenção para a foto acima. É da familia da minha mãe. Reparem que a primeira geração de primos tem uma certa quantidade de quimica no cabelo e a tez amarronzada. ja os pequenos são alvos, cabelos lisos cor de mel e tem olhos azuis. os outros dois que não estão na foto seguem o mesmo padrão. Pensamos então: será que entramos por cotas na familia, ou fomos os projetos-piloto que não deram muito certo e num aprimoramento da produção um modelo mais bonitinho e com o defeito capilar solucionado foi implementado?
Fato é que houve uma limpeza de barriga, como queria minha tia Doralice. Mas é também bem provável que ela volte a ser sujada. Sabe por que? Porque a precupação da minha tia não era genuinamente racismo, era de alguém que ja sentiu a dor de um pente tirano num cabelo duro e que não queria isso pros seus netos. Mas casou-se com um mulato, porque o amor se dá pelas pessoas e não pelos cabelos ou cor de pele.
Acho que hoje, entre todos os meus primos, eu sou a mais mulata. Mas prometo observar as futuras proles e mostrar pra vocês que essa separação de raças que o movimento negro prega é pura jogada de marketing e que essa parada de assumir cabelo duro e revoltoso é coisa de gente preguiçosa. Sou muito mais feliz e livre (ou liberta, se entender isso como uma alforria) depois da progressiva!
2 comentários:
Humm, sei não, a sua tia não era "genuinamente racista" - isso soa um pouco como "aquelas bobagens", desta vez não do movimento negro, mas dos que acreditam que falar de racismo é racializar a sociedade brasileira - mas era racista à brasileira, aquela coisa que deprecia esculhamba e faz piadas racistas, mas também agrada, namora e até casa com um moreninho, mas sem deixar de lado os artifícios do embraquecimento, como o "limpar a barriga" ou "melhorar a raça". Eu usei touca de meia de mulher para dormir no princípio da adolescência, para acordar com o cabelo penteado. Sofria sim com vergonha do meu cabelo mestiço e ruim de pentear. Mas felizmente fui liberto por Toni Tornado, Jackson Five e outros que me mostraram que Black is Beutiful.
Bem, agora que o cabelo é mais raro na minha cabeça não faz a menor diferença...
Sei não, sei não...
Beijos,
Atila
Não conhecia essa expressão "limpar a barriga"!
Adorei o texto e essa coisa de raça será sempre controversa, no fundo "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é".
O que me incomoda são os discursos raciais, que não tratam o problema na raiz, que pra mim que mais que cor de pele é de cunho sócio-econômico, am enfim, isso é apenas a minha opinião!
A minha avó era racista e só começou a abrandar o seu olhar quando a idade avançou a a vida se extinguia dia-a-dia pela incapacidade dela de realizar as suas atividades com a mesma destreza de antes...
Minha mãe não é branca, meu pai pode-se dizer que sim, e lá em casa nascemos 4 com características raciais distintas, cada um com seu cabelo, cada um com sua pele... mas no seu jeito livres e libertos de qualquer conceito pré-fabricado!
Eu até queria ter coragem de fazer uma progressiva pra abrandar a juba, mas sou medrosa pra química e até gosto do meu cabelão ondulado que depois de seco, se penteado, vira uma touca do Bozo!
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